O Governo Federal
anunciou que os estudantes de Direito deverão exercer trabalho
obrigatório para o Estado. Do ponto de vista governamental, a
iniciativa privada não seria boa opção. Qual será a próxima
categoria a ser engolida pelo monstro estatal brasileiro?
O jurista André Karam Trindade fez
um ótimo texto criticando a obrigatoriedade e a oficialização do ensino cartorial:
“Estágio
obrigatório e a oficialização do ensino cartorial
Por
André Karam Trindade
Na
última terça-feira (13/3), o ministro da Educação anunciou que os
estudantes do curso de Direito deverão fazer estágio obrigatório
em órgãos públicos — como, por exemplo, Poder Judiciário,
Ministério Público, Defensoria Pública etc. — para obterem o
título de bacharel. Tal iniciativa conta com o apoio do presidente
da comissão nacional de educação jurídica da OAB, Eid Badr, para
quem a atividade prática é 'absolutamente essencial'. Esta seria
apenas uma das mudanças planejadas juntamente com a OAB. Outras se
referem ao processo de abertura de novos cursos e, igualmente, das
grades curriculares.
Segundo
Aloizio Mercadante, 'precisamos ter mais critérios para a expansão
dos cursos de direito e uma das exigências que nós vamos fazer,
entre outras, é o estágio obrigatório'. Em seguida, complementou o
ministro: 'o Brasil tem quase 850 mil advogados e esse é o pior
caminho: alguém estudar, pagar faculdade e depois não ter direito
de exercer a profissão plenamente'.
Com
efeito, a proposta — no estilo 'residência obrigatória', à
semelhança do que ocorre nas ciências da saúde, porém
concomitante ao curso — é polêmica na medida em que envolve
interesses distintos: uma coisa é a importância da prática
jurídica, que parece indiscutível; outra, bem diversa, é a
exigência de que o estágio seja realizado em órgãos públicos.
Neste
contexto, em que pese o reconhecimento da importância da prática
jurídica, merecem destaque as dúvidas levantadas por Joaquim
Falcão, diretor da Escola de Direito da FGV-Rio, em coluna publicada
na Folha de S.Paulo (14/3):
- 'O Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria seriam obrigados a abrir vagas e concursos aos milhares de alunos que se formam?'
- 'Estes estágios em geral são pagos. Qual o impacto no orçamento destes órgãos? Haveria um aumento de pessoal fixo, ainda que com estagiários rotativos?'
- 'Pode o ministério, um órgão do Poder Executivo, criar obrigações para o Poder Judiciário e o Ministério Público? Como fica a autonomia desses órgãos?'
- 'A efetividade da regulamentação dependeria da adesão dos órgãos públicos?'
- 'O estágio seria obrigatório apenas nos órgãos governamentais ou valeria para organizações de interesse público ou social, como ONGs, associações?'
A
estas questões, de caráter provocativo, acrescento outras que
também colocam em xeque a proposta do MEC e da OAB:
- Quantas vagas seriam necessárias para absorver a horda de estagiários que habita os mais de 1.200 cursos em funcionamento atualmente em todo território nacional?
- Aproveitaríamos a experiência que adquirimos nos últimos anos com a profissionalização dos concursos públicos para a realização das seleções de estagiários?
- Como fariam os alunos que pretendem se dedicar à pesquisa jurídica desenvolvida junto às universidades e centros de pesquisa; ou, então, aqueles que trabalham e não dispõe de tempo para mais uma modalidade de estágio? E os alunos que não pretendem exercer a profissão?
- O que garante que o estágio obrigatório em órgãos públicos — e não na iniciativa privada — é uma solução para a baixa qualidade da formação dos juristas?
- Qual a proporção, atualmente, entre estudantes que realizam estágio e estudantes que não o realizam antes de concluírem o curso? O que assegura que os primeiros são mais qualificados que os segundos? Existe algum prognóstico?
-
Quem será responsável por fiscalizar o cumprimento dos estágios e,
sobretudo, garantir sua efetiva contribuição na formação dos
estagiários?
Além
disso, há uma série de indícios no sentido de que, na verdade, a
obrigatoriedade do estágio em órgãos públicos decorre da
preocupação com os altos índices de reprovação no Exame da
Ordem, verificados especialmente nos últimos anos.
O
paradoxo, entretanto, pode ser formulado do seguinte modo: por que
forçar os estudantes a realizarem estágios obrigatórios em órgãos
públicos e insistir no modelo tecnicista se é notório que o maior
déficit dos estudantes está, precisamente, no plano do conhecimento
teórico (isto para não falar da língua portuguesa)?
Uma
pergunta final: por que não investir no ensino da dogmática
jurídica, que ainda é a maior deficiência dos estudantes, como
revelam os resultados da primeira fase de todos os concursos
públicos, especialmente o Exame da Ordem, cuja última edição
reprovou 83,33% dos candidatos na prova objetiva?
Em
suma, tudo indica que a obrigatoriedade do estágio em órgãos
públicos — ou estágio 'social', como alguns já o vem chamando —
aponta, definitivamente, na direção da institucionalização de um
ensino jurídico não apenas profissionalizante, mas também
cartorial. Será que é isto o que queremos?
André
Karam Trindade é
doutor em Teoria e Filosofia do Direito (Roma Tre/Itália), mestre em
Direito Público (Unisinos) e professor universitário.
Revista
Consultor
Jurídico,
16 de março de 2013”
Fonte:
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