Segue
abaixo o excelente artigo do escritor João Ubaldo Ribeiro, no qual as coisas são postas em seus devidos lugares:
“Que
elites, que esquerda?
17
de março de 2013 | 2h 13
João
Ubaldo Ribeiro - O Estado de S.Paulo
A
cada instante, e cada vez mais, somos alvejados por milhares de
informações de todos os tipos, muitas delas procurando, como
consequência final, alterar nosso comportamento, seja para pormos fé
nas lorotas pseudoestatísticas e conceituais que nos pregam os
fabricantes de remédios, pastas de dentes e produtos de farmácia em
geral, seja para acreditarmos que determinado partido político, ao
pedir com fervor nossa adesão, realmente tem alguma identidade que
não seja a que lhes emprestam seus tão frequentemente volúveis
caciques. Aparentemente, nossos cérebros se defendem de ser
entulhados com essa tralha e grande parte dela é esquecida.
Mas
em algum lugar da mente ela permanece e afeta talvez até nossa
maneira de ver o mundo. Se prestarmos atenção aos comerciais de
tevê e fizermos um esforçozinho de abstração, veremos que temos
plena ciência de que quase todos eles, ou mesmo todos, se apoiam em
pelo menos uma mentira ou distorção. O xampu não produz cabelos
como aqueles, a empresa não dá o atendimento ao cliente que
apregoa, o plano de saúde falha na hora da necessidade, a velocidade
da banda larga não chega nem à metade do que contrata, o sistema de
saúde que descrevem como o nosso parece gozação com o pessoal que
estrebucha em macas no hospital, o banco professa carinho e oferece
gravações telefônicas diabólicas, o lançamento imobiliário
mente sobre as vantagens do bairro e a segurança da construtora, a
moça não é bonita como aparece, o sinal da operadora não é
confiável, a prestação sem juros é enganação, a garantia do
carro não vale nada para a concessionária. Tudo, praticamente, é
mentira e sabemos disso. Mas, mistérios desta vida, agimos como se
não soubéssemos, numa postura acrítica e já meio abestalhada.
Em
relação à política, talvez nossa situação possa ser até
descrita em termos mais drásticos. As afirmações mais
estapafúrdias são divulgadas e ninguém se preocupa em examiná-las.
Não me refiro a chutes que prostituem a estatística e fazem dela,
como já se disse, a arte de mentir com precisão. Os números nos
intimidam desde a escola primária e qualquer embusteiro se aproveita
disso para declarar que 8.36% (quanto mais decimais, melhor) de
alguma coisa são isso ou aquilo e ver esta assertiva ser recebida
reverentemente, como se não fosse possível desconfiar de tudo, da
coleta dos dados, às categorias empregadas e os cálculos feitos.
Média, então, é uma festa e eu sempre penso em convidar o dr. Bill
Gates para morar em Itaparica e me transformar em nativo do município
de maior renda média do Brasil, cuíca do mundo.
Não,
não me refiro a números, mas a alegações estranhas. Por exemplo,
esse negócio de o governo ser de esquerda. Só se querem dizer que a
maior parte do nosso cada vez mais populoso bando ministerial é
constituído de canhotos. O presidente Lula, que não quis ser
presidente emérito e prefere continuar sendo presidente perpétuo
mesmo, já disse - e creio que com sinceridade - que não é, nem
nunca foi, de esquerda e que não usa mais nem a palavra "burguesia".
E que é que o governo fez que caracterize uma posição de esquerda?
Apoiar Chávez com beijos e abraços, ao tempo em que respalda os
bilhões de dólares de negócios brasileiros na Venezuela? Manter
boas relações com Cuba, o que não quer dizer nada em matéria de
objetivo político? Ser da antiga turma que combatia o governo, no
regime militar? E já perguntei aqui, mas pergunto de novo: o PMDB é
de esquerda? Quem é esquerda, nesse balaio todo? Furtar, desviar,
subornar, corromper são de esquerda? Zelar por valores éticos e
morais é de direita?
É
gritaria da direita reclamar (e pouca gente reclama) do descalabro
inacreditável em que se tornaram as trombeteadas obras do rio São
Francisco, hoje uma vasta extensão de ruínas e destroços, tudo
abandonado ao deus-dará, em pior estado do que cidades bombardeadas
na Segunda Guerra? Ou o que está acontecendo com a Petrobrás, que,
da segunda posição entre as petrolíferas, despencou para a oitava
e pode despencar mais, acrescida a circunstância de que ninguém
explica direito qual é mesmo a situação do hoje já não tão
radioso pré-sal? E combater a miséria nunca foi de esquerda ou
direita. Ter altos índices de popularidade tampouco.
Também
se diz que as elites dominantes querem derrubar o governo. Que elites
dominantes? A elite política, que se saiba, é a que exerce o poder
político. O Poder Executivo é exercido pelo governo que está aí e
que, presumivelmente, não atua contra si mesmo. O Poder Legislativo
está sob o controle da base do governo. E o Judiciário, por mais
que isso seja desagradável aos outros governantes, não pode
associar-se à ação política no sentido estrito. Já as elites
econômicas não parecem empenhadas em subverter uma situação em
que os bancos têm lucros nunca vistos, conforme o próprio
presidente perpétuo já frisou, e as empreiteiras estão muito
felizes e, convocadas pela presidente adjunta, prometeram fazer novos
investimentos. Qual é a elite conservadora que está descontente e
faz oposição ao governo? É justamente o contrário.
Finalmente,
temos a imprensa golpista. Que imprensa golpista? Que editorial ou
comentário pediu golpe? Comportamento golpista é o de quem acusa o
Judiciário de ser agente de armações politiqueiras, quem chega a
esboçar desobediência a ordens judiciais, quem se diz vítima de
linchamento, quando foi condenado em processo legítimo e
incontestável. A imprensa sempre se manifesta contra o desrespeito à
Constituição e a desmoralização das instituições democráticas
e tem denunciado um rosário sem-fim de ações lesivas ao interesse
público. Golpista é quem busca silenciá-la ou controlá-la, não
importa que explicações se fabriquem e que eufemismos inventem.”
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